João Pimenta é o talento da vez da Casa dos Criadores

No início da Casa dos Criadores, Biti Averbach/Moda sem Frescura, fez um artigo-reflexão aqui no BlogView sobre a importância do evento, berço de vários estilistas importantes para o país. Na minha própria memória, vi momentos únicos, como o desfile em que Ronaldo Fraga homenageava Jum Nakao e vice-versa, desfilando simultaneamente suas coleções. Todos os desfiles- performances de Karlla Girotto, os de Martielo Toledo (que segue sua carreira muito bem obrigado em Londres, desde 2001) ou os pertubadores de Icarius (que foi para Milão em 2002, já passou pela Casa Lancetti e agora faz parte da equipe de estilo da Diesel).

Com o advento do Amni Hot Spot, a Casa de Criadores perdeu muitas de suas estrelas, como Priscilla Darolt, Fábia Bercsek e Simone Nunes, que agora integram o primeiro time do SPFW. É claro que um evento concorrente, que atraiu vários jovens estilistas com a possibilidade de financiamento de suas coleções, abalou a estrutura de André Hidalgo. No ano passado, com o fim do Amni, muitos jovens talentosos ficaram sem espaço para apresentar suas criações e agora estão procurando alternativas para continuarem seus caminhos.

Na média geral, as coleções de Inverno 2007 foram OK, com os altos e baixos de sempre, mas até o último desfile nenhum grande momento, desses históricos que fizeram a história da Casa, havia contecido. Sim, Walério Araújo sempre é ótimo, mas ainda assim seu desfile-memorável foi na igrejinha do Umberto Primo.

Entrada triunfal de João Pimenta

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A congada é uma procissão de escravos feiticeiros, capatazes, damas de companhia e guerreiros que levam a rainha e o rei negro até a igreja, onde serão coroados.

O último desfile doterceiro dia, do jovem estilista João Pimenta, ultra-querido na cana eletrônica, porque veste vários promoters e hostess da noite, colocou um time de percussão ao vivo. Ele já tinha se destacado com sua coleção anterior, e como eu havia comentado então, numa crítica pelo UOL, “o que não deve deixar de ser falado e analisado é que João Pimenta teve muita ousadia e elevou em muito a temperatura da Casa dos Criadores. A moda sempre precisa de gente assim e agradece quando aparece.”

Mas é nesta temporada que ele conquista definitivamente seu posto entre os novos talentos que merecem uma atenção muito maior da imprensa especializada. Seu desfile inspirado nas Congadas e mais especificamente na cultura negra é uma verdadeiro manifesto de moda e identidade, e de um espírito moderno que o próprio Brasil desconhece.

A verdadeira modernidade

O conceito de moderno, vale lembrar, está ligado filosoficamente com idéia de ruptura e o surgimento de um novo homem. A literatura, a arte e arquitetura foram fundamentais para a construção material deste conceito. Por incrível que pareça para alguns, a noção de moderno no Brasil, principalmente para Mario de Andrade, começa no Barroco. Em 1924, uma caravana de escritores paulista chegou a fazer uma viagem para as cidades históricas de Ouro Preto, Mariana e Tiradentes.

De acordo com Eneida Maria de Souza, da UFMG: “motivados pela lição de Blaise Cendrars, poeta franco-suíço que incentiva os jovens escritores a buscar o exótico, a tradição e o primitivo presentes na arte barroca mineira, os paulistas saem em busca de elementos capazes de propiciar a descoberta de uma cultura de traço nacionalista. Uma das fórmulas encontradas por Mário de Andrade, com base na experiência com o barroco, foi a sua conjunção com o expressionismo alemão, por ambos responderem por princípios estéticos semelhantes: a deformação do objeto artístico e o surgimento do homem novo.”

O Barroco brasileiro, para estudiosos como Mario de Andrade e até o arquiteto e urbanista Lucio Costa, é o momento fundante de nossa identidade nacional. Ele difere de suas origens portuguesas porque é fruto do processo de mestiçagem do nosso país. A junção das culturas índias, européias e negras produz uma nova abordagem do mundo, que marcou profundamente nossa identidade ou a nossa não-identidade. É como afirma Gilberto Freyre : “O Brasil já nasce moderno.”

DNA Nacional

Ao buscar para sua coleção a idéia de identidade — de cultura negra, no momento fundante das escolas de samba, através das Congadas; no processo de libertação dos escravos, com a figura de Chico Rei, (na verdade Galanga, rei do Congo, que foi trazido como escravo para o Brasil no século 18 e se tornou o primeiro escravo liberto que consegue comprar terras e começar uma luta para libertação de seu povo) — João Pimenta recupera o significado de moderno na moda. Como nada é por coincidência nesta vida, recentemente Marie Rucki e Colin McDowell falaram da importância de se buscar um DNA autenticamente brasileiro, que isso que faria diferença no mercado estrangeiro.

Ronaldo Fraga na sua busca por um Brasil interiorano, e Alexandre Herchcovitch, na sua última coleção inspirada nos bóias-frias, provaram que isto é possível. Tufi Duek conseguiu por alguns momentos trazer de volta a força da Forum, quando se inspirou em Niemeyer recentemente. Só para citar alguns.

Isto não é fantasia?

Muitos depois do desfile, me perguntaram se o que foi visto na passarela não era fantasia. Afe, afe, afe!!! Vamos lá, então! É claro que teve a força do stylist de João Pimenta para contar sua história, que começa com as duas rainhas negras, com ancas XXL, prenunciando a dignidade e a emoção que estava por vir. Sim, eram vários os Reis, Príncipes, Exus que passaram por ali, para formar uma imagem de moda com adereços poderosos-fantasiosos, como diria minha mestre, Regina Guerreiro.

Pergunta: alguém que vê ou escreve sobre um desfile de John Galliano, seja para Dior, seja para sua marca, pergunta se aquilo é fantasia??? Só para saber…

Num exercício de desconstrução das peças desfiladas, você pode perceber vária peças usáveis, muito bem cortadas, com todos os desejos da temporada.

Alguém falou em metalizado???

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Xadrez???

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Silhueta masculina slim???

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Macacão masculino???

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Paletós mais curtos??? E hoodies (capuzes)???

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A lista é grande, e tudo desmembrado na loja, afirmo, vai ser ótima opção para um novo homem, moderno, que tanta gente quer ver afinal. Como disse Yoji Yamamoto, a moda masculina é o lugar onde a moda pode realmente avançar, e quem sabe, finalmente chegar no século XXI.

Aplauso de pé!

Quem me conhece, e até por códigos da profissão, sabe que é muito raro eu aplaudir um desfile. Eu estalo os dedos e pronto. Neste, além de aplaudir, fiz isso de pé. Neste anos todos, dá para contar nos dedos da mão quantas vezes fiz isso, como por exemplo, no desfile de Ronaldo Fraga inspirado em Zuzu Angel, no desfile de papel de Jum Nakao, no de Herchcovitch apresentado no hospital Umberto Primo.

E por que o fiz para João Pimenta? Porque não é todo dia que a moda se dá o trabalho de falar mais do que dela mesma. Todo mundo fala das intersecções de moda e arte, então, quando ela assume seu verdadeiro papel cultural, de estar sintonizada com seu tempo e a necessidades sociais, quando serve para a reflexão em um momento difícil para o mercado, quando ela não se afoga nas mesmices, vale o aplauso.

Quando um desfile vira síntese de toda a história de um evento, que muitos não conhecem, que poderia fazer sucesso em qualquer lugar do mundo, isso, em si, justifica a luta para manter a Casa dos Criadores por muito tempo.

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