Texto para Dora

Em 2006, Dora Longo Bahia fez uma individual no CCBB do Rio de Janeiro, Escalpo Carioca e outras canções e me convidou para fazer o texto do folder. Fiquei muito honrado e emocionado com o convite.

A primeira vez que eu encontrei com a Dora, profissionalmente, foi em Curitiba, na exposição Imagética,em 2003, na qual fui um dos curadores. Ela chegou brigando, e acabei peitando ela, firme e forte. Fiquei muito p com ela. Depois, acabamos nos reencontrando, construindo uma amizade que explodiu num reveillon no Rio, seguido de carnaval e verões na Cidade Maravilhosa.

Este foi o texto que enviei para ela, o qual considero meu melhor texto de arte que já escrevi:

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DORA:
Um convite que é um miniclipe trash de música… um folder que é um cartaz… uma pintura já desgastada, não pelo tempo, mas pela própria ação da artista… um lugar na exposição na qual você pode tocar ou ouvir música… um catálogo que não tem capa… hummmmmmmmmmmmmmmm, sei não, diriam uns.

Acredite, muitas dúvidas vão persistir antes e depois da exposição e a máxima isto é arte? pode (ainda) atormentar alguns. Não tenha medo: o diferente, a ambigüidade, a ironia, o humor trazem dúvidas, mas você nunca fica imune. É como dizem por aí: se você está no inferno, abrace o capeta.

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A DIFERENÇA…
Dora Longo Bahia é uma artista que trafega por diferentes linguagens, como fotografia, vídeo, pintura e música. Apesar de fotógrafos dizerem que a fotografia dela não é boa, pintores idem, videomakers também…. Ah! Os músicos também torcem os ouvidos.

Ué, por que então, diabos, você deveria ver esta exposição?

Vamos lá:
1. Nunca a excelência técnica é na realidade sinônimo de arte.
2. Nem sempre o que é bem-feito é bom ou belo.
3. Nunca acredite em tudo que dizem.
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A poética da artista está ligada ao pensamento de que o meio pode (e deve) ser investigado mesmo por aqueles que não o dominam. Seu processo, independente da linguagem que ela utiliza, quer, em várias instâncias, perverter o status quo da linguagem. Ela se apropria do meio, mas não se deixa apropriar ou seduzir por ele. “A intenção é trazer para a pintura um elemento da fotografia, e para a fotografia, um elemento da pintura, criando uma discussão sobre uma imagem ou sobre um imaginário, que é aquilo ao que a imagem te remete…” explica a artista ao ser entrevistada por Ana Paula Cohen, para a exposição Who’s afraid of red.

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MESMO QUE AMBÍGUA…
Quando você entra na exposição e se depara com pinturas meio que rasgadas sobre suportes como papelão, concreto, madeira, com temas que se opõem e se complementam, como as cidades do Rio e São Paulo, da série Escalpos; com a videoinstalação que tem uma cidade infernal e uma praia; com o catálogo que começa com uma citação de James Joyce; o que de fato acontece é que você está num jogo de esconde-esconde, muito próprio da Dora.

Ela mesma define: “Eu sempre penso na importância de fazer um trabalho bonito. Eu gostaria muito de fazer uma obra bela. Então, me pergunto o que faz algo ser bonito ou não, e me interessa pensar como uma alteração ou deformação pode mudar o modo de as pessoas verem as coisas. Algo que poderia ser feio – se mudamos um pouco – passa a ser visto como belo. Talvez seja uma ambigüidade de significados, você os coloca de um jeito que as pessoas não conseguem identificar o que deve ser visto e não sabem mais se aquilo é bonito ou feio. Por exemplo, quando rasgo uma pintura, será pintura, será que o rasgo não pode ser um rasgo lindo?” (entrevista de Ana Paula Cohen)

O que era um cartão-postal ou uma foto vira uma pintura. Essa pintura é feita em camadas e mais e camadas de tinta; a artista vai retirando este material-imagem de seu suporte [por isso a denominação Escalpo], e cola em outro, seja numa parede, numa placa de concreto ou em madeiras de tapumes. Todos os significados anteriores da imagem vão paulatinamente sendo destruídos e outros vão surgindo.
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TRAZ A IRONIA
Mudanças de significados que ocorrem também na própria trajetória da artista. Nos anos 90 ela resolveu montar uma banda de rock, Disk-Putas, muito conhecida no circuito underground, junto com a designer gráfica Priscila Farias, o performer Marcelo Ferrari (Marcelona) e o ainda-não-DJ, Renato Cohen. As letras irreverentes, os fanzines, os clipes, a atitude nonsense, não são considerados “obra da artista”. Num mundo de caixas tão organizadas de rótulos, de prateleiras lotadas de conceitos, é muito difícil compreender estas perversões como sendo próprio do fazer artístico da Dora.

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Mas quantas Doras Longo Bahia existem? Eu conheço apenas uma. Não vejo diferença entre a “Dora-artista” e a “Dora-roqueira”. Tem muito do trabalho de performance. Mesmo na instalação que ela propõe para esta exposição, Canções de amor no templo do rock, é muito de sua vivência com o Disk-Putas e ou com sua outra banda, Verafisher.
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Essa possibilidade de auto-ironia, de não ter nada a perder – nem como artista nem como professora, nem como mulher – faz com que ela consiga terminar uma pintura de grandes dimensões e depois rasgá-la, sem que isso a torne uma obra menor… e podemos considerar a mesma atitude quando ela toca em bandas, com os nomes que ela escolhe e as músicas que compõe.

Perguntada sobre as citações que ela insere em algumas de suas obras, ela nega com veemência: “A citação coloca as questões no mesmo lugar e tempo em que elas estão. Eu prefiro o plágio, pois recoloca as coisas em outro contexto, e assim, podem ser atualizadas sempre. Eu adoro um outro jogo que é ver se as pessoas advinham a origem da questão que coloco…”

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QUE CORROEM AS DÚVIDAS
Por isso, Dora não se coloca numa posição nem acima e nem abaixo de qualquer um. Se Walter Benjamin analisou a perda da aura artística na época da reprodutibilidade técnica, a artista advoga a perda da aura do artista. Nada que seja a antena-sensível-do-seu-tempo. Acredita, sim, que o artista tem uma responsabilidade social porque a obra de arte é em algum tempo e em algum lugar de domínio público, por isso tem algo a contribuir para o outro.

Portanto, se sua fotografia “não é tão boa” ou se sua pintura não alcança o virtuosismo é porque de fato isto não interessa à artista. “Há uma definição no dicionário de filosofia da qual gosto muito: a diferença entre ilusão e alucinação. A pintura é ilusão e a fotografia é alucinação. Na ilusão, você vê e se deixa enganar, mas sabe que é mentira, alucinação, você está sendo enganado, mas não sabe, pensa que é verdade. Quando você vê uma fotografia, você entende como verdade, porque foi fotografado de algum lugar. A preocupação é descobrir o que foi feito para se chegar àquilo.”

A mistura entre alucinação e ilusão, entre precário e bem acabado, entre opostos que não deveriam ocupar o mesmo espaço, jogos de luz e sombra, físicas e transcendentais, é o que, de fato, importa.
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E ACABAM COM AS IMUNIDADES
E, ao final, quando você se depara com duas belas imagens em vermelho de uma floresta, com moldura e tudo, sem rasgos, nem as inscrições de palavrões de outrora, você imagina que pode respirar em paz. Entretanto, o que lhe aguarda ainda é mais forte.

Como exposição não é filme, posso adiantar que é uma instalação feita a partir de uma sala em vermelho, com instrumentos dispostos para serem tocados. Não mexidos, e sim tocados. Bateria, guitarra, baixo e microfone estão lá prontos para você criar seu próprio Disk-Putas, ou Verafisher, ou fazer como a artista e emplacar seu mais recente projeto Maradonna, que faz sua estréia nesta exposição.

Ainda acha que não foi contaminado? Então escute cada um dos CDs da série de canços de rock’n’roll com o tema amor, que ela pediu para diversas pessoas prepararem para ela. Depois disso, saia de alma lavada, porque Dora Longo Bahia prova que a música é universal e entendida por qualquer um, assim como a obra de arte contemporânea.

Sim, você acabou de sair de uma exposição de arte. Alguma dúvida?

Se tiver, saiba que ela

A-DORA!

Com amor

Ricardo Oliveros

 

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Chris von Ameln/Folha Imagem

4 Comentários

  1. Estou simplesmente absorvido por esse texto-declaração-de-amor.
    Não sei se é Ricardo ou Dora ou vice-e-versa.

    Há algumas semanas atrás li sobre Dora no site da Palô e fiquei impressionado com a obra (exposta no post abaixo!) mas não me senti curioso a procurar por seu trabalho. Talvez porque o tempo tem me corroído e as minhas mãos estão doando de tanto serem espetadas; mas o fato é que eu não posso mais passar um dia sem vir aqui e me apaixonar cada vez mais por sua escrita, Sir Oliveros.

    Realmente, a obra de Dora é a-DORA-ble!
    É uma miscigenação de pieguice com sofreguidão e uma lavagem no estômago.
    E enquanto nos perdemos com Giseles e Anas e Gianecchinis ela nos mostra que é possível mesmo o belo se tornar lúcido, não lúdico!

    Sem comentários para esse texto maravilhoso!

    Te aDORo! (olha a intimidade, quem vê pensa!)
    Beijo, me contrata! (KKKKK)

  2. a dora é simplesmente uma das artistas mais completas que vejo atualmente cujo trabalho é profundo e sim bonito e complexo mesmo quando é feio
    sorte e sorte que as estrelas sempre te iluminem

  3. […] Dora Longo Bahia lança seu mais novo trabalho pelo Youtube. Já publiquei um texto que fiz para exposição da artista no CCBB do Rio, no qual comento a capacidade dela misturar as […]

  4. […] Maurício Ianês, Rodrigo Bueno, Nicolás Robbio, Carla Zaccagnini. Entre os já estabelecidos, Dora Longo Bahia e Iran do Espírito […]


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